Pois é
"O PROBLEMA do amor é o tempo. O tempo é, aliás, o problema de todos os sentimentos e actos da vida, o inescapável fantasma. O amor é a única possibilidade de transcendência temporal que nos é dada - não porque dure toda a vida mas por ser "infinito" enquanto dura, como escreveu Vinicius de Moraes. Paradoxalmente, neste nosso mundo de dia para dia mais sofisticado e carregado de sabedorias diversas, cada vez há mais gente menos certa de alguma vez ter conhecido o amor. Será o conhecimento assim tão incompatível com a eternidade? Teria razão aquele Deus castigador que condenou ao suplício da vergonha e dos trabalhos forçados as suas criaturas inaugurais, porque se atreveram a sair da plácida pobreza de espírito?
Claro que a narrativa bíblica pode ser interpretada de outra forma: Deus enviou a maçã e a serpente para que as suas criaturas ganhassem o direito ao livre-arbítrio. Nesta interpretação, que me parece muito mais digna da divindade - porque parte do princípio da Liberdade -, Eva e Adão saíram do paraíso oferecido para construírem, eles próprios, o seu paraíso, à sua maneira. Beneficiaram de um crédito vantajoso de que mais nenhum casal no mundo voltou a dispor: eram os únicos seres humanos sobre a Terra. Incomparáveis. Nascidos, sem apelo nem agravo, um para o outro. Hoje, esta pré-determinação parecer-nos-ia o inferno (e é um inferno em que moram ainda muitas raparigas e rapazes, pelo mundo fora), mas, naquele Tempo sem tempo, o caso não se punha assim: Eva não sofria a concorrência de nenhuma Maria cheia de graça e sem celulite, e os músculos de Adão, mirraditos pela falta de ginásio e trabalhos duros, brilhavam na ausência de qualquer espelho, janela ou lavador de janelas. Podiam ficar fartos um do outro sem se aperceberem dessa fartura - não tinham mais ninguém com quem conversar. Não tinham sequer a possibilidade de se interrogarem sobre outras orientações sexuais. Viviam entre flores e frutos, em pleno desenvolvimento sustentável. Quando penso nesse paraíso, deixo de ter medo de cobras. Todas as coisas têm os seus lados positivos e as suas horas de fulgor. E estou em crer que, por muito que tenham gritado um com o outro, depois da saída do paraíso, e até amaldiçoado a sua sorte, Adão e Eva se divertiram mais nessa vida mortal que depois lhes coube do que na eternidade sem tempo de onde saíram.
Pois que é a eternidade sem tempo? Nada. E o tempo sem eternidade? Um inferno. Este período que nos calhou viver assemelha-se demasiado ao inverso do paraíso: em vez de pasmaceira e imortalidade, trabalho contínuo a contra-relógio. Um e outro sistema alienam a liberdade humana. O excesso de consciência da vida (ou seja, da morte) aniquila-nos a própria experiência da vida. Corremos, em vez de vivermos. Precipitamo-nos, em vez de escolhermos. Como aprendemos que o amor não se escolhe, coleccionamos beijos e corpos na ânsia de que essa essência mágica surja, como uma aparição, de dentro de um deles. A ansiedade pelo grande momento faz-se carrasco da possibilidade desse momento (Henry James escreveu sobre este tema um livrinho magistral, "A Fera na Selva").
Estamos cercados pelo apelo da paixão. Lançamo-nos ao sexo em busca da paixão, ou para a esquecer, o que é sinal do mesmo desespero. Não queremos morrer sem ter vivido tudo, e o tudo é cada vez mais visível e impossível de alcançar. Acresce que demoramos mais a morrer; a velhice é tão implacável como sempre foi - com a gravidade suplementar de se ter tornado mais longa.
O infinito é a medida da eternidade humana. A ciência desfibra-nos em hormonas e compostos químicos para explicar que a paixão tem razões fisiológicas que se esgotam ao fim de dois anos de convívio (três, com sorte). Para que queremos saber tanto? Para perder o deslumbramento absoluto da primeira troca de olhares, para perder o contacto com a eternidade que só esses instantes de entrega radical nos dão a ver. Beijamo-nos e pensamos no dia em que deixaremos de nos beijar - sem reparar que o pensamento nos conduz de imediato a esse dia. Não nos entregamos para não sofrer - e que encantamento tem essa vida sem entrega?
"Tu és a minha casa, contigo eu sou livre" - diz o amante a Lady Chatterley, no belíssimo filme de Pascale Ferran, inspirado no clássico de D. H. Lawrence. O sexo levou este par de amantes à paixão, a paixão conduziu-os ao amor, a uma visão mais lúcida e radical da existência, e ao êxtase espiritual da liberdade partilhada. Por isso o filme acaba com um sim: "Chamar-me-ás se te sentires infeliz sem mim, mesmo que daqui a muito tempo?" Sim, diz ele. Falta-nos hoje essa capacidade de nos entregarmos primeiro, sem medo, e de cobrir de flores o corpo amado, como se não houvesse outro corpo nem outra terra no mundo - e de então escolher a eternidade infinita desse momento como destino imóvel, para lá das mil circunstâncias e corpos da vida, num simples e imortal sim."
Claro que a narrativa bíblica pode ser interpretada de outra forma: Deus enviou a maçã e a serpente para que as suas criaturas ganhassem o direito ao livre-arbítrio. Nesta interpretação, que me parece muito mais digna da divindade - porque parte do princípio da Liberdade -, Eva e Adão saíram do paraíso oferecido para construírem, eles próprios, o seu paraíso, à sua maneira. Beneficiaram de um crédito vantajoso de que mais nenhum casal no mundo voltou a dispor: eram os únicos seres humanos sobre a Terra. Incomparáveis. Nascidos, sem apelo nem agravo, um para o outro. Hoje, esta pré-determinação parecer-nos-ia o inferno (e é um inferno em que moram ainda muitas raparigas e rapazes, pelo mundo fora), mas, naquele Tempo sem tempo, o caso não se punha assim: Eva não sofria a concorrência de nenhuma Maria cheia de graça e sem celulite, e os músculos de Adão, mirraditos pela falta de ginásio e trabalhos duros, brilhavam na ausência de qualquer espelho, janela ou lavador de janelas. Podiam ficar fartos um do outro sem se aperceberem dessa fartura - não tinham mais ninguém com quem conversar. Não tinham sequer a possibilidade de se interrogarem sobre outras orientações sexuais. Viviam entre flores e frutos, em pleno desenvolvimento sustentável. Quando penso nesse paraíso, deixo de ter medo de cobras. Todas as coisas têm os seus lados positivos e as suas horas de fulgor. E estou em crer que, por muito que tenham gritado um com o outro, depois da saída do paraíso, e até amaldiçoado a sua sorte, Adão e Eva se divertiram mais nessa vida mortal que depois lhes coube do que na eternidade sem tempo de onde saíram.
Pois que é a eternidade sem tempo? Nada. E o tempo sem eternidade? Um inferno. Este período que nos calhou viver assemelha-se demasiado ao inverso do paraíso: em vez de pasmaceira e imortalidade, trabalho contínuo a contra-relógio. Um e outro sistema alienam a liberdade humana. O excesso de consciência da vida (ou seja, da morte) aniquila-nos a própria experiência da vida. Corremos, em vez de vivermos. Precipitamo-nos, em vez de escolhermos. Como aprendemos que o amor não se escolhe, coleccionamos beijos e corpos na ânsia de que essa essência mágica surja, como uma aparição, de dentro de um deles. A ansiedade pelo grande momento faz-se carrasco da possibilidade desse momento (Henry James escreveu sobre este tema um livrinho magistral, "A Fera na Selva").
Estamos cercados pelo apelo da paixão. Lançamo-nos ao sexo em busca da paixão, ou para a esquecer, o que é sinal do mesmo desespero. Não queremos morrer sem ter vivido tudo, e o tudo é cada vez mais visível e impossível de alcançar. Acresce que demoramos mais a morrer; a velhice é tão implacável como sempre foi - com a gravidade suplementar de se ter tornado mais longa.
O infinito é a medida da eternidade humana. A ciência desfibra-nos em hormonas e compostos químicos para explicar que a paixão tem razões fisiológicas que se esgotam ao fim de dois anos de convívio (três, com sorte). Para que queremos saber tanto? Para perder o deslumbramento absoluto da primeira troca de olhares, para perder o contacto com a eternidade que só esses instantes de entrega radical nos dão a ver. Beijamo-nos e pensamos no dia em que deixaremos de nos beijar - sem reparar que o pensamento nos conduz de imediato a esse dia. Não nos entregamos para não sofrer - e que encantamento tem essa vida sem entrega?
"Tu és a minha casa, contigo eu sou livre" - diz o amante a Lady Chatterley, no belíssimo filme de Pascale Ferran, inspirado no clássico de D. H. Lawrence. O sexo levou este par de amantes à paixão, a paixão conduziu-os ao amor, a uma visão mais lúcida e radical da existência, e ao êxtase espiritual da liberdade partilhada. Por isso o filme acaba com um sim: "Chamar-me-ás se te sentires infeliz sem mim, mesmo que daqui a muito tempo?" Sim, diz ele. Falta-nos hoje essa capacidade de nos entregarmos primeiro, sem medo, e de cobrir de flores o corpo amado, como se não houvesse outro corpo nem outra terra no mundo - e de então escolher a eternidade infinita desse momento como destino imóvel, para lá das mil circunstâncias e corpos da vida, num simples e imortal sim."
Inês Pedrosa
1 Comments:
Peco desculpa... demasiado longo para se ler num webcafe quando se tenta fazer o check-in on-line... Outro dia talvez se tenha mais capacidade de leitura...
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